Preciso de me exprimir, contar toda a verdade, não esconder nada, porque a minha consciência me pesa, porque a escuridão me atrai, porque o desdenho que vejo nos olhos de desconhecidos me trai. E aí as palavras deixam de fazer sentido, os gestos são banais e as memórias são tudo a que nos pegamos numa noite fria onde não há mais lugar na alma para mais destruição. Desperdício de recursos e forças, seres entregues à sua execução por opção própria, como ratos, pequeno, impotentes, vazios absolutos. No seu egoísmo, são cegos à sua própria condição e lançam pragas à divindade que os criou, pelas dores, pelos seres, pelos caminhos que sozinhos escolheram e neles se perderam. Sem vergonha gritam à noite perjúrio na esperança de haver ajuda ali mas a única ajuda que encontram é aquela que sempre rejeitaram. Então caem, são a multidão que furo, ignoro, desprezo. Até ver a face dela, aí caio num estado estático, onde a destruição deixa de ser a alma mas algo a fugir. A sua angélica face, a sua doce voz, tudo o que ela é, procuro mais isso do que um bocadinho de morte.
Derivo no meu delírio, onde me falta a inteligência e a originalidade, onde sou comum, parte da multidão. Não nota em mim, ignora-me, despreza-me, fura-me o coração com uma estaca e o vazio fica onde o amor outrora foi. Mas há esperança, tanta quanto as estrelas no céu negro, na imensidão do Universo onde ela é nada, mais multidão, excepto a meus olhos. Admito que sou louco, perdido, um apaixonado que não sai do seu estado porque é confortável, porque gosta de aí estar, simplesmente porque gosto de a ver, ainda que ela seja distante e desconhecida. Não preciso de dias, de letras, de pessoas. Preciso da sua visão e da sua voz - não em mim - tão perto de mim que possa realmente tocar-lhe, minha divindade mascarada de dor. Conhece-la, ser-lhe algo mais, oferecer-lhe o meu ser por completa estabilização da minha mente. Egoísta! Como posso ver dor nos seus olhos e ainda querer-la para mim. Mudo de mim para sombra e observo à distância, sem nada fazer, esperando o tempo.
Afundando-se mais no seu buraco negro, estendo uma mão para a apanhar, tento ser a luz que tanto ela repele com os olhos. Se apenas ela visse o brilho nos seus olhos, se ao menos entende-se o significado dos meus. Mas não falo, não me exprimo, não quero ser mais dor. Posso tentar dar-lhe mais, ser-lhe mais mas mais ela se afunda, mais ela foge, mais ela se refugia no seu canto, pequena como ela é, onde não consigo chegar. Ainda estendo a mão, tanto por ela como por mim, esperando o seu toque. Dar-lhe uma flor para quando ela chegar aqui, puxada pela corrente da minha vontade, pintar-me da forma que ela quer para que eu seja alicerce da sua sobrevivência. Tudo para a ter aqui, nem que seja um retrato vivo do egoísmo que trará a completa morte do meu sorriso, nem que mate tudo o que sou. Tudo isto para algum dia dizer-lhe o que significa o brilho nos meus olhos porque eles só brilham quando a vejo e porque a vejo.