sábado, 19 de março de 2011

Fantasmas

Velhos fantasmas vêm cumprimentar esta noite. Velhas lembranças do que costumava ser, escondidas no fundo de um copo cheio com um liquido alaranjado, danças esquecidas por tempos em que estas melodias entoavam, contentavam e chegavam. Hoje já não são o suficiente para matar a sede, para acalmar esta crescente raiva. Então o tempo definha, alegres os fantasmas dançam, embriagados na sua existência. Cansados olhos seguem-nos pelo salão da minha imaginação, desejando uma noite para adormecer, uma Lua cheia para aconchegar a minha personificação. Mas com sacrifício vem o ganho e os fantasmas ganham forma. Sombras que se alastram, conquistando paredes e tecto, caminhando lentamente na minha direcção. Vozes que sussurram, pulmões que suspiram, tudo ilusões da mente. Mente essa que me engana, que me leva para longe, para onde ninguém me quer. E verdade a ser vista, não digo nenhuma mentira que me chegue para satisfazer a solidão, nenhum mundo de fantasia que me preencha a vastidão do ser que se encontra abandonado, desejando uma tarde de Sol na praia com ela.
Mas são tudo memórias, melancolia que bate à porta do presente, vinda da estrada do passado. Escuridão recheada de uma inexistência igual à de que passou por mim. Vidrado, olho para o fundo do copo, alguma alma reside aqui e me completa a noite. Já não é só uma valsa ao sabor de uma música muda que se dança, são pensamentos e sentimentos que se cruzam e anulam, que se justificam e auto-destroem, fazendo a vida parecer mais densa sem realmente saber o que lhe dizer ou fazer. Passa por mim nas entre-linhas mas tardiamente a agarro. Deixo-a escapar e a certa altura já nem consigo explicar o que estou a pensar ou o que chego a falar. De quem falo, para quem me dirijo? A mim já não interessa, quando se chega ao fundo da garrafa e nos apercebemos que estamos sentados num canto do chão, mal sentimos as mãos e a própria bebida que fazia parte de nós já só sabe a água a descer a garganta, a noite anuncia o seu fim. Levanto-me para enfrentar o ar fresco da madrugada mas é um castigo maior do que posso aguentar. A única alternativa é voltar a sentar-me e esperar que os pensamentos de desespero me afundem num poço de arrependimento e ódio. E aí chegam finalmente as memórias dela. A imagem do seu sorriso, o seu profundo olhar, assustado. Castigo demais para este pequeno Homem que já se esqueceu do que é chorar. Encolho-me e adormeço para acordar num outro tempo, com qualquer outra esperança.

Areal

Tragam de volta o Verão e tudo o que ele tem para nos oferecer. O calor, o conforto, as areias, as ondas. Algures nesta terra, os meus olhos percorrem as dunas, esquecidas e mal-tratadas agora, ansiadas por milhões em tempos mais propícios, onde o Sol domina e conquista almas livres que vagueiam sem objectivo, sem significado. Prontos para caminhar até onde o grande rei desconhecido ousa reinar, ditar sem contestação, ordenar morte ou vida. Pode ser um tirano a nossos olhos mas será justo vê-lo com olhos de quem vê mas não sente? Não somos dignos de sermos chamados animais, tal como não somos dignos de visionar tal beleza, uma noite de Verão na praia, o horizonte adormecido e as ondas a adornar o reflexo do luar.
Algo completo se esconde por detrás do vasto oceano, algo de perfeito que entretanto deixou de ter lugar entre nós. Talvez a noite nos pudesse dar a conhecer a tal existência mas não o faz. E talvez o dia nos pudesse apresentar o brilhantismo da sua silhueta mas não apresenta. Então continuamos superiores no exterior pelo areal, diminuídos e entristecidos no interior, pelas ondas infinitas onde o mar é horizonte e o céu é a única alternativa. Algas chegam à costa e desistem de beber o mar salgado, apresentado-se a nós como reis do mar, um ser que um dia ousou dançar com as ondas e aproximar-se da costa. Visionando o mar a controlar a brisa e deixando o tempo passar, a noite fica gélida e o humano não encontra corpo a que se encostar. Então vira costas a todas as ondas e as histórias que estas contêm e volta a casa, assegurado que amanhã ainda haverá ali um oceano, simplesmente duvidando se ele voltará ao areal.
Sendo injusto, o tempo preenche a vida do humano e afasta-o do mar. Apercebendo-se disto o mar dita o nascimento e crescimento de um novo humano, nascido de ti e de mim. Completo pelas viagens que ambos fizemos, pelo caminho que se cruzou e pela relação com a praia que o aperfeiçoou, descobre grutas e resiste às lutas contra o tempo, sendo exemplo de que um rei deve ser primeiro rei da sua mente antes de ser rei de outrem. E lembrando-se de finais palavras minhas constrói um novo castelo na areia, "podes controlar-te a ti mas não controlas a tempestade que cresce dentro de ti" escrita rodeando e protegendo o castelo. Uma última homenagem a uma relação com o mar que deixou mágoa para trás, fantasmas que caminham pela beira-mar de mãos dadas, habitando o castelo de areia que se recusa a desmoronar.