segunda-feira, 28 de abril de 2008

Terço na boca do corvo - parte I

Uma luz brilha através das gretas na janela, falhas perfeitas que decoram o quarto escuro com a luz do Sol da manhã, anunciando um novo dia, um despertar maldito para o contínuo ciclo vicioso da vida. Sou pouco mais que um marinheiro perdido numa tempestade de pensamentos, afastado do oásis da relação perfeita e duradoura, remando contra a maré de sentimentos que surgem no horizonte, trazidos pelo vento. Sozinho, o sentimento torna-se mutuo entre mim e a minha sombra, a reflexão sombria do meu ser exterior, a prisão de carne e pele tantas vezes referida antes, tantas vezes odiada mas útil, compensando a mente fútil que lidera a marcha dos pecados com desejos de destruição. Cego, surdo e mudo, familiar da besta, mais um sinal do Apocalipse, mais um portal para a árvore ardente que se mantém em pé, mesmo contra o fogo, mesmo contra o vento que teima em atirá-la do precipício. A fragilidade torna-se nua aos olhos do mais atormentado ser, a protecção é ténue e mal se forma responsável por tudo isto, por toda a sujidade que foi deitada sobre esse corpo moribundo que continua a resistir para a eternidade.
O corvo encontra-se agora sobre a minha cama, explorando o quarto com os olhos, procurando um cadáver onde se alimentar, trazendo novas do mundo lá fora, onde o vento continua a soprar com grande força, onde o Sol brilha na cegueira dos pequenos. Deixou-me aqui, fascinado nas suas penas pretas que abandonou na sua entrada na minha solidão, ofuscando por momentos a luz do Sol. O fim está eminente e o esconderijo está perto de desaparecer, transformar-se em pó, amostras de um silo onde outrora um demónio se escondeu de todos os sentimentos, pessoas, evoluções, caminhos destructivos. De regresso a mim próprio, possuo nas minhas mãos fotografias de tempos de liberdade, domínio da mente e corpo, seguindo a alma escura para a auto-destruição consciente. As latas de cervejas vazias estão deitadas no chão, num canto sujo do quarto, isoladas das restantes latas cheias, o meu vício diurno. Procuro então alimento, o frigorífico que contém o sangue que me mantém aqui até ao limite. O dia restante é passado pela distracção do canto desafinado do corvo, que volta dia após dia, procurando a sua última vitima destinada, eu.
Maldito tenha sido o dia em que a encontrei, tão brilhante como um anjo, tão docemente viciante como o álcool que me preenche agora as veias. Outrora amaldiçoei a sua existência, outrora a tentei eliminar, mas agora amo-a, protejo-a, escondo-me dela e de mim mesmo, deixo que o destino encontre uma outra forma de continuar sem que a tenha de a assassinar, agora que a deixei existir, depois de a ter criado. Sublime, inconsciente movimento dos olhos, segui-a até aquele canto tão bem iluminado, debaixo da cruz de cristo, abominando essa figura que se apresentava acima de nós mas nada mais que um perdido na vida sem significado algum. As
palavras levaram-me até hoje, observando o corvo com o terço na boca, dormindo nos meus ombros...

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