sexta-feira, 29 de abril de 2011

Um dia depois...

A noite era de vento e as palavras eram de castigo, enquanto que, ensanguentado, o pobre ser caía na escuridão a confessar o seu amor imutável e explícito à deusa demonstrada perante seus olhos. Ela tinha tudo, ela era tudo mas o seu castigo era a eterna insensibilidade, a falta da paixão que ela via a arder nas faces e olhos dos Homens mas nunca correspondendo, nem por um beijo, nem por uma noite. Ela era a questão platónica da nossa vida, pensando nos sentimentos que nos deixavam na isolação. Na simplicidade do seu quarto, chorando lágrimas não sentidas, no cinzento dos seus pensamentos, nada passava por lá, ninguém lá entrava, nem mesmo o vento com toda a sua fúria conseguia penetrar a sua fortaleza e trazer um leve toque de humanidade à pele seca da idade.
    O tapete já se derretia perante a composição das gotas que em cima dele caiam e o chão gemia de dor enquanto a acidez dos seus passos o corroía, destruindo o caminho onde ela passava para ninguém mais passar. Foi o facto de não ver mais a sua razão de viver nesta terra entre mortais tolos e esperançados que se escondeu por detrás de mentiras e devaneios. Ainda assim não voou, não abriu as asas para o indolor céu. Cá permaneceu no seu altar cristalizado de vento proibido e de gelo abominado pela sua pureza solar. Deusa condenada a caminhar por esta terra imunda, não merecedora da sua beleza, das suas palavras. Nada consegui fazer para a satisfazer, para a agarrar mais um minuto antes de eu cair de volta à realidade, ao estatuto natural das coisas que dita destinos e gera barreiras entre nós.
Fez de tudo para conseguir sentir, para achar nela uma gota de sentimento que não fosse expressa como solidão, melancolia ou dor. Ou, pelo menos, assim me pareceu. Poderia ser fraco e cego sobre a sua existência mas ainda cá anda a ideia de que sabia do que ela sentia. Por vezes o mundo não parecia injusto, com ela nos meus braços. Outras vezes parecia que tinha tudo contra nós, que iria fazer de tudo para nos separar, para nos quebrar. E aí regressava-mos à nossa frágil relação, quilómetros de distância mas mente e alma ligada. E sabia eu do que ela falava. Compreendia absolutamente aquilo que ela passava, o cinismo nas palavras, o fingimento das nossas acções. Víamos nos olhos das pessoas os seus pensamentos e o que esperavam de nós. E assim agíamos. Foram noites inebriantes. Noites que acabaram. Mas não sabia eu que ela me fazia o que nós fazíamos aos outros.
E agora aqui me encontro, debaixo de fortes chuvas e ventos que cortam a pele, a caminhar por estas ruas com que estou tão familiarizado, lembrando-me do que foi e desejando o que nunca chegou a ser. Estou a imaginar-nos no Verão, uma ida à praia, um passeio pelo jardim. Estou a ver-nos na Primavera, a apanhar uma rosa para ti, a ficar-mos acordados até tarde a falar. Estou até a ver-nos no Outono a comemorar o meu aniversário, ano após ano, sendo a tua presença a maior prenda que alguém alguma vez me poderia dar. Mas agora chegou a altura de avançar, seguir em frente, por esta avenida até a algures a que chame casa, um sítio de conforto e calor. Mas ainda há parte de mim que te deseja aqui...

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