segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

[3] Pendendo

"Começo a notar que a idade já não tem perdão de mim. Deixa-me pegado a memórias e cicatrizes e traz a transparência para os bastidores do ser. A minha ignorância e insegurança consumem os focos da peça de teatro que é a minha vida. E o público é um exaustivo turbilhão de filosofias e julgamentos sem qualquer razão de ser. Apenas por um impuro olhar, um relance de mau humor causado pelo frio. E está tanto frio cá dentro. Tão frio... distante, isolado. Não se consegue encontrar luz pois a luz provém dos candeeiros e, ao contrário desses, eu sinto e penso. Penso... e se penso. Se há coisa que não páro de fazer é pensar. Pensar, observar e julgar no silêncio que pergunta as questões de ser. E sinto. Sinto ódio, raiva, compaixão, um misto de todas as coisas humanas que restam em mim. É confuso. Não quero sentir... não quero apaixonar-me e andar por aí agarrado a alguém e a algo. Quero-me sentar em cima da cama e escrever até a minha mão desaparecer e a minha imaginação desaparecer. Aí saberei que os sentimentos esvaneceram. Finalmente, uma razão real para escrever. Escrever loucuras e espinhos que magoam, fazem chorar e sangrar."
Pendendo nas questões da idade. O oxigénio já não entra pelas narinas, o sangue deixou de circular pelas veias, o corpo jaz deitado na cama, roupa preta, face branca. O tempo passou, tão rapidamente deixou este corpo podre, decrépito. O filme da vida desenrola-se nas suas últimas palavras lançadas ao ar, livres, à vontade de serem apanhadas pelo primeiro que se interessar. Durante toda a sua vida, risos, abraços, alegrias. Desilusões eram meros acasos do destino que eram apagados pela forte crença da evolução dos dias. "Amanhã vai ser tudo melhor, tudo certo" - então ele acreditava e ele continuava, contra muros, prédios, casas e almas, nunca parando, mesmo quando o sangue era retirado do seu corpo. A sua mente foi-se lentamente degradando, até o mínimo raio de Sol significava a destruição do seu mundo, a sua Atlântica cairia em ruínas no fundo do Oceano antes dos tempos começarem. A força escapou-lhe no último segundo e as palavras ficaram-lhe entranhadas na garganta, asfixiando, quase matando tanto quanto o sentimento de culpa de não ter concretizado a sua vida na totalidade.
O seu cabelo, grisalho, esvoaça com o vento, cabeça deitada no solo de alcatrão. A sua tolice atingira-lo nos seus últimos anos, a respiração também ficou dependente das máquinas a que se encontrava ligado. O seu retorno ao seu tempo de criança, a lágrima conta a história da saudade da energia e vivacidade, da inocência e felicidade. O sorriso é a artificialidade do cérebro morto que só sabe agora fingir até se deitar a última vez, rodeado daqueles que na sua vida sempre fingiram querer saber dele. Ele sabia bem do cinismo, das palavras secretas e do punhal que lhe era espetado nas costas durante o seu sono. Era um velho seco, cheio de sorrisos falsos e alegrias mortes mas ainda tinha a sua experiência de vida e o conhecimento sobre pessoas. Mais sábio que a cabeça do génio da família, sobrevivia das migalhas que as crianças lhe ofereciam nos anos e no Natal. O vento levou-lhe o sopro e com ele foi a alma desertada.
As batalhas, o sangue derramado, a teimosia, o querer fazer parte de um mito, ser uma lenda. As cicatrizes mostram onde as espadas queimaram e os lábios rompidos mostram onde os cigarros tocaram. As palavras cortam o ar e o som é espalhado pelos ouvidos. Pendente entre vida e morte, vê-se já no caixão, com todos os falsos a sorrirem a sua volta. Já não se volta para o materialismo e está demasiado cansado para a vingança, deixa-se adormecer. Sonha do branco e do preto, da água eterna que percorre o seu corpo e o limpa e dos fogos que ardem nos campos de guerra que já percorreu. Retorno à dependência de outros para continuar o sofrimento, inerente a todos nós. O vento é agora parte de si e é ele que leva as suas cinzas, agora que cedeu à vastidão do negro. E nada mais ficaram os outros a ganhar, no final sempre houve vingança.

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