quinta-feira, 26 de maio de 2011

Hoje as saudades batem

Hoje as saudades batem à janela como a chuva que se esqueceu de cair durante o Inverno. Batem fortemente, consolidam a escuridão da noite. Trazem um horizonte turvo, imensamente iluminado por prédios e lâmpadas de rua distantes. Trazem lágrimas aos olhos que reprimo com o máximo esforço, levam o punho à parede e o sangue à mão agora distorcida, em breve inchada. Rapidamente se alastram pela mente como um rio cuja nascente é a alma. Passam memórias, visões, tempos passados que depois de tanto tempo enjaulados gritam, libertos da tirania da supressão de alguém que foi magoado e ainda não recuperou totalmente. Controlam a noite e movimentam-me as mãos, fazem-me preferir estar sentado na escuridão a partilhar a luz com outrem.
Desenhos na parede, deformações dentro da mente que foram vomitadas cá para fora, violentamente crescendo dentro de si, um gato que caminha levemente e se aconchega na cama, um imenso quarto com fotografias, memórias, traições e felicidades. Nunca tive hipótese de o explorar. Sempre imaginei, no entanto, estar a dormir com ela nos meus braços, o gato no fundo da cama, deitados num canto do quarto com a parede a branco a implorar-nos para a preencher com o resultado da nossa simbiose. Era esse o sonho. Até um dia maligno de Inverno ele ter sido apagado forçosamente e trocado por um vazio doloroso que ainda não foi eliminado. No dia seguinte apenas a chuva torrencial conseguiu aparar a mágoa com que ainda me debato.
Hoje as saudades batem à porta. Familiarizadas com o quarto, sentam-se num quarto e lá ficam, lentamente morrendo, levando-me com elas para uma escuridão a que já estou habituado. O tempo passa, continuamente, aqui nada muda. Não mudo eu, não muda o espaço, não muda o ar que se respira. O quarto mantém-se igual desde que ela cá passou, uma noite perfeita que consegui olhar-lhe para a profundeza dos olhos e tocar-lhe na alma. Dormimos juntos e na manhã seguinte ela entrou no barco e caminhou para as brumas que escondiam a sua casa. Deixou-me para trás, desolado, querendo um pouco mais da noite que morreu. A memória leva a mais um quadro de palavras na mente e tudo é deixado para trás. Amanhã terá novas caras e novos acidente da vida. Mas ela permanece aqui, no seu trono, intocável, imutável.

1 comentário:

Blood Tears disse...

As saudades permanecem e o vazio impera.

Tanta emoção contida nas tuas palavras...

Blood Kisses*