segunda-feira, 30 de maio de 2011

A rua através da janela alta

Olhar frio pela janela alta para a rua desconhecida lá fora. Cá dentro há um calor antigo que dei como falecido há muito tempo. Memórias que se desvaneceram com o tempo, talvez não tenham sido fortes o suficiente para cá ficar, só deixaram a impressão na mente para não me esquecer que vivi naqueles tempos. Fico nesta janela a olhar lá para fora enquanto a chuva cai e ela desespera por reconhecimento cá dentro. Deixo-me ir na corrente de pensamentos que me atravessa a mente neste momento, não deixo de admirar a rua. Esta rua que é uma parte integrante da alma de Lisboa e que eu desconheço, sendo cidadão da mesma, partilhando a minha alma com esta cidade. E ela vive aqui. E eu desconheço-a. Conheci-a em tempos passados. Mas esses tempos passados foram lavados por tempos mais recentes e agora já não distingo a sua face da multidão. Chove cá dentro enquanto chora lá fora.
Novas emoções percorrem-nos todos os dias, é algo natural, não o podemos evitar. Podemos, no entanto, repetir o ciclo. A informação chega-nos ao cérebro e é assimilada. Se a melancolia nos conquista nada podemos fazer para evitar sentir falta do que já tivemos. Tenha sido um sorriso, uma caminhada pelos vales e montanhas que rodeiam as casas de Verão, uma volta de bicicleta para algures mais escondido para mostrar um sorriso reservado. A melancolia cai-nos pesadamente no dia e rasga-nos a alma. Não o podemos evitar. Tal como não podemos evitar o tempo passar e a vida mudar-nos. O que ontem foi alegria hoje pode ser indiferença. Tudo muda e a falta de contacto distancia-nos tanto até ao ponto de sermos irreconhecíveis um para o outro. E por isso não se pode dizer que não mudei. Tirando o cabelo, a barba, os óculos, ect. Mudei, nem que tenha sido interiormente. Abri os olhos, por assim dizer. E fechei a boca. Suspiro. Ela mantém o seu olhar incrédulo, boca semi-cerrada, à espera de algo em mim que mostre que tudo o que disse é absurdo. Mantenho-me quieto.
Não a posso culpar pela falta de contacto. Foi tanto culpa dela como minha. Nenhum de nós procurou o outro durante toda esta década. Seria injusto deixar a culpa toda nas costas dela e esperar que ela carregasse esse fardo ao mesmo tempo que procurasse uma forma de voltarmos ao que éramos. Por isso abro uma porta na minha alma para que ela volte a entrar, uma hipótese para que, com o decorrer do tempo, com muita conversa e passar de novo pelo processo de nos conhecermos, consigamos ser outra vez amigos e passar não apenas uma década assim mas muitas mais. Através da tarde e até depois da chuva acabar e a rua escurecer de vez histórias são contadas e dá-se como terminada um tensão, um nervosismo que dominava a nossa conexão. Agora somos mais do que meras memórias do passado, somos companhia do presente que observa a chuva primaveral a cair através da janela alta na rua da alma da cidade, uma parte minha, outra dela. E o adeus foi simples, amanhã choverá outra vez certamente.

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