domingo, 19 de agosto de 2007

Escritos de um demónio

Sento-me na beira da estrada e espero que o nevoeiro passe. Sangro profundamente, esta ferida dentro de mim que demora a cicatrizar está a corroer-me por dentro. As minhas mãos estão machadas de sangue mas nada posso fazer para as limpar se não esperar que venha a chuva e apague todas as memórias da luta mortal que acabei de ter. Vejo toda a civilização ao fundo com todas as suas luzes e memórias. O seu medo pelo obscuro e desconhecido é tão ridículo que muitas vezes se torna cómico. Mas este não é o momento para rir. Este é o momento de luto. Dois demónios restantes neste mundo e a imortalidade de um destes está prestes a acabar.
Tenho a cara manchada de lama mas continuo a caminhar pois dirijo-me para um sítio onde apenas o infinito existe. Nada mais importa, nada de materialismos, superioridades ou ignorância. Apenas o poder que existe por dentro de ambos os demónios. Nenhum dos dois quer combater mas a causa está acima de tudo. Apenas a um de nós ela ama, amor verdadeiro, amor que arde como as chamas em madeira. Lutamos para definir qual de nós vai ficar com ela. Mas ela chora. Chora gotas de sangue que nos são apelativas, nosso alimento. Este é o meu vazio, a razão pela qual gosto da chuva e da escuridão, porque me sinto em casa quando estou sozinho. Ela mostra-me que há mais do que apenas esta luta idiota e a vida infinita. Existe o amor que ela demonstra por mim.
A demonstração de galos acabou. A ferida ainda não cicatrizou, nem nunca vai, pois o que a fecha é o amor mas tal blasfémia criada pela mente dos humanos morreu, foi atirada para o lixo como que um fardo, um peso nas costas. Perdi todas as esperanças que tinha em encontrar a minha alma gémea pois aprendi que tal não existe. Cada alma é única, até de este demónio demente que eu sou. Crio mil e uma razões para estar escondido no canto escuro, afastado do sol que me queima a pele. Gosto da solidão e escuridão do meu canto, nada que alguém me possa alguma vez tirar. Já faz parte da minha alma, da minha entidade. Não levantarei a cabeça pois isso só me fará rebaixar e quebrará este orgulho amaldiçoado. Tempos malignos onde a escuridão reinará virão e tudo o que os humanos acreditam e construíram na sua mente acabará destruido com as suas esperanças e sonhos.
A eternidade é algo que para mim foi destinado. Assim como a dor e o vazio que sinto por dentro. Amaldiçoado eu fui mesmo antes da minha alma nascer. Nunca fui destinado a um propósito maior, a felicidade e sorrisos. Esta dor sempre me perseguirá. Esta ferida foi aberta há muito tempo e o sangue que por ela saiu já me devia morrer, não fosse eu um demónio amaldiçoado com a vida eterna. Espero agora entre as árvores, na floresta, pela chuva e por um dia melhor. Até parece mentira aquilo que sinto e digo. Mas contento-me apenas por ouvir as lágrimas dos deuses a cair no chão, nas folhas que cairam no chão. Olho para a escuridão na esperança de encontrar algo que me faça mover mas tudo o que vejo são os seus olhos verdes a chorarem, o seu cabelo loiro a voar enquanto que o vento sopra para a sua bela face.
Levanto-me para outro dia. Pelo menos penso que é dia pois as altas árvores acabam por ocultar toda a luz que o sol emite. Apenas a água da chuva deixam passar. Por isso caminho para lá da floresta, a caminho das rochosas montanhas onde apenas o cume é branco de neve. Algo mágico rodeia estas partes. A sombra oculta-me dos olhos mais curiosos dos passageiros por aquela estrada maligna construída pelos humanos. Nunca pensaram nas consequências dos seus actos e agora estão a sofre-las. Esta passagem foi para sempre banida por os velhos druidas dos tempos medievais. Ignoro os olhos passageiros e concentro-me na viagem que tenho na frente. Mas tudo o que vejo são os olhos dela a chorarem, a sua boca a largar palavras de desespero, a expressar os sentimentos que lhe passam na cabeça. A raiva, as saudades, a dor, o amor que ela nutre por mim. Mas há muito que o meu coração foi deitado para o lixo como que uma máquina construída com uma deficiência. E aprendi que a minha mente engana, que os meus olhos mentem e que apenas na minha alma posso confiar quando situações de perigo se atravessam na minha frente.
Muitos homens já foram mortos pelas minhas mãos ou pela minha espada construída pelos elfos dos países nórdicos já não existentes, submersos na água para esta humanidade que é a maldição deste mundo não descobrir, apenas para um dia voltar a emergir e corrigir todos os erros e pecados pelos humanos cometidos contra o nosso lar. Não consigo distrair a minha mente dos pensamentos dela e não consigo apagar as memórias dela. Desespero no meio das árvores e arbustos. Grito o nome dela numa entoação muda, sinal de que algo nasce dentro de mim. Corro o mais rápido que posso para me afastar deste sítio que apenas me trás de volta aos pecados do passado. Não existirá algo superior a mim que me possa acabar com esta eternidade de sofrimento com um golpe?
O vento passageiro levanta o meu cabelo cinzento. Olho para os lados e tudo o que vejo é a escuridão confortante que me leva a pensar que existe a hipótese de conseguir esquecer tudo o que existe nesta terra e recomeçar noutro sítio diferente. Volto a olhar para a minha frente e vejo-a. Parece-me que está ali mas continuo a correr pensando que é uma ilusão. Ela continua a chorar sangue. Tenta-me. Mostra-me o seu pescoço onde corre o seu sangue puro, nunca provado e que corre por entre artérias e veias. A sua beleza divinal deixa-me cego momentaneamente. Aí percebo que não é uma ilusão mas sim a sua presença que se encontra perante mim, desejando o calor esquecido do meu corpo e o amor morto que pensei perdido. Vejo os seus olhos verdes e perco-me neles. Sinto-me nas alturas mas rapidamente volto a mim. Não espero a felicidade numa relação, espero a felicidade na morte.
Pego numa folha caída e seca do chão e entrego-lhe para a mão. É algo para ela se lembrar de mim nos tempos futuros, que estarei distante a esquecê-la e a tentar o que tanto desejo, a morte da minha alma. Essa alma amaldiçoada que já dura desde o início dos tempos, tempos que ela própria iniciou apenas para conhecer o verdadeiro amor que está agora a deixar escapar. Atiro-me aos fogos do Inferno em batalhas épicas. Flechas e espadas encontram-se à minha frente mas nada me atinge, nada me rasga a carne, apenas este amor e vida eterna que é a maldição da minha vida.

Sem comentários: